quinta-feira, 10 de maio de 2012

Cecília e Bandeira - memória

De repente tenho saudades das vezes que vi ou estive com Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Na minha juventude esbarrei, no caminho, com notáveis da nossa cultura brasileira. Relendo este dois poetas e vendo fotos tão expressivas, voltei-me ao passado com olhos abertos e a carne viva. Escreverei noutro momento sobre breves encontros. Palestra de Cecília na ABI e Bandeira caminhando lento da Av. Beira Mar em direção à Presidente Wilson, Castelo.
A porta interna do meu armário de vestir era um quadro mural. Colocava ali o que me tocava; textos e fotos. Em 1964, quando Cecília faleceu, fui olhar a foto e a poesia ali presentes;
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre, nem triste:
sou poeta”.
Nos anos sessenta e início dos setenta era coisa natural encontrar pessoas como Drummond de Andrade, Bandeira, Alceu Amoroso Lima ou Thiago de Mello andando pelas ruas, gente comum, por onde passávamos. Por onde elas passavam. Por vezes, ia assistir palestras e debates em vários espaços de cultura como o Centro Dom Vital. Ouvir o criminalista Roberto Lyra na Faculdade de Direito, hoje, UERJ, uma glória para o espírito. Que riqueza fazer cursos com o dominicano, francês que se fez brasileiro, Frei Pedro Secondi proferindo verdadeiras conferências sobre Theilhard Chardin. Estas pessoas pertenciam os espaços públicos e nos eram familiares. Conviviam e conversavam solícitos com o próximo.
Clarice Lispector andava em lugares mais discretos, mas andava, por que sei; no Jardim Zoológico a observar os animais. Eu a conheci em casa do artista plástico Darel Valença. Djanira passeava por Santa Teresa apoiada em sua bengala; gostava de estar misturada ao povo que tanto amou. O pintor Loio Persio descia a Rua Aprazível, onde morava, para tomar café no Bar do Arnaudo e o escultor Roberto Moriconi transitando confortavelmente pelo bairro, a pé ou em sua limusine, acenado como bom italiano, era pura alegria.
O Museu de Arte Moderna extensão de minha morada desde sua fundação. A nata das Artes estava semanalmente ali presente. Até meados de setenta aquela festa viva de encontros inesquecíveis entre artistas plásticos e apreciadores das artes transitando no museu, nos ateliês, corredores, jardim e no bar; ponto de convergência. Ir para o museu, trocar ideias ou simplesmente vaguear, era a razão da vida.
Mordaças militares mataram a liberdade de se estar sendo. O MAM nunca mais foi o mesmo. Andar, percorrer as ruas com silêncios guardados, sempre foi direito de todos. Os detentores do sistema excludente não podiam retirar nossos pensamentos invioláveis e ideais libertários. A escuridão da ditadura dispersou os criadores das artes plásticas e da cultura em geral.
Penso em Vinicius de Morais que não era um ícone isolado; Ipanema era sua pátria. Pessoa solícita. Convidado tocou violão e cantou para alunas do tradicional Colégio Jacobina, em 1965, com a maior das generosidades. Antonio Carlos Jobim dava suas caminhadas tranquilamente, só não o via quem não acordasse bem cedo ou nem reparasse um andarilho com chapéu pelo Jardim Botânico atento ao canto dos pássaros e o vento soprando folhagens.
Ipanema uma praça onde a realeza se encontrava; Albino Pinheiro, Fredy Carneiro, Hugo Bidê, Leila Diniz, Maria Vasco. Amava ouvir o guru Luis Carlos Maciel. Havia ainda Olga Savary, Jaguar, Ziraldo e gente que nem mais me lembro. Memórias do meu escaninho.
Glauber Rocha, muito agitado, tinha ponto marcado nos bares entre Ipanema e Leblon. Estávamos juntos no tempo em que eu convivia em sensível amizade com sua irmã, Anecy, que morreu tragicamente em 1977 ao cair num fosso de elevador.
No Cine Paissandu uma geração inteira se cruzava incontinente em sensualidade e charme. Não é saudade, é história.
Helio Pellegrino não se encasquetava no consultório psicanalítico, atendeu clientes enrustidos até mesmo nos bares. Gostava de sentir-se humano, viver sem amarras. Nem tinha preconceitos com a Astrologia profunda. Intelectual doce e meigo.
Nise da Silveira e Mario Magalhães andavam pelas ruas como todo mundo. Entre fatos interessantes foi convidarem Chico Buarque para jantar no eterno Bar e restaurante Lamas. Nise gostava de passear por Jardins com a gravadora Marlene Hori. E sua grande amiga Lia Cavalcanti, acirrada protetora dos animais, costumava frequentar a Churrascaria Recreio, convidando a muitos a beber e degustar, levando para sua casa sobras de carne para seus cães.
Artur da Távola sentado num banco em torno da mesa, no Grupo de Estudos C. G. Jung, era todo atenções para com as sábias palavras de Dra. Nise. Lembranças que ficam tão sutis e meio perdidas. Pessoas notáveis pela singularidade; artistas, andarilhos, poetas e intelectuais, de todo tipo, passaram nas quartas-feiras por este Grupo; porta para o Museu de Imagens do Inconsciente e salto quântico na vida pessoal. Depois dos estudos com Nise, íamos tomar algo nos bares da redondeza numa conversa infindável. As noites de inverno eram quentes, aprazíveis.
As pessoas ricas de saberes e imaginação criativa não andavam em carros blindados, não se esquivavam em carapaças, circulavam entre seus iguais, seres humanos, em beleza e poesia. Gosto imenso do tempo atual onde piso, tendo saudades do atemporal que permanece vivo e presente pela revolução do espírito.
Martha Pires Ferreira, maio, 2012. ________
Foto de Cecília Meireles -  Revista Manchete, anos 60.

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